A história da KUTV da União Soviética

A história da KUTV da União Soviética

Autora: Talia Lux

Tradutor: Red Yorkie

CAMARADAS EQUIPADOS COM A PODEROSA ARMA DO LENINISMO

A tarefa da Universidade dos Povos do Oriente é torná-los verdadeiros revolucionários, […] capazes de desempenhar as tarefas imediatas do movimento de libertação nas colônias e países dependentes, dedicando-se totalmente, de corpo e alma.

AO LEREM o livro do finado comunista estadunidense Harry Haywood, os leitores são expostos a um vislumbre do período de Haywood na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente (KUTV) da União Soviética. O que exatamente era ensinado na KUTV? Quem eram seus alunos? O que a Internacional Comunista (Comintern) esperava obter ao criar essa universidade? Este artigo oferece uma breve visão geral da história da KUTV. Nele, descreverei em linhas gerais a história da KUTV e seus impactos duradouros sobre o mundo comunista.

Em 1921, o Comintern criou a KUTV. No discurso de Stalin para a turma de 1925 da KUTV, ele descreveu exatamente o que desejava que os povos colonizados obtivessem da educação, “A tarefa da Universidade dos Povos do Oriente é torná-los verdadeiros revolucionários, armados com a teoria do leninismo, equipados com a experiência prática do leninismo e capazes de desempenhar as tarefas imediatas do movimento de libertação nas colônias e países dependentes, dedicando-se totalmente, de corpo e alma.”[1] Dois anos mais tarde, Stalin fez outro discurso para os alunos da universidade. Ele reiterou a importância do leninismo, afirmando que os alunos deveriam ser “equipados com a poderosa arma do leninismo” e, quando formados, “deveriam dedicar toda energia e conhecimento à causa da emancipação dos povos trabalhadores do Oriente da opressão imperialista”.[2]

O Oriente Soviético

Da China aos EUA, passando pela Palestina, a universidade aceitava alunos de povos oprimidos de todo o mundo.[3] Stalin também falou sobre a definição de “Oriente” e sobre quem era aceito na KUTV: “O primeiro grupo consiste em pessoas que vêm para cá oriundas do Oriente soviético, de países onde o domínio da burguesia não existe mais, onde a opressão imperialista foi derrotada e onde os trabalhadores estão no poder. O segundo grupo de alunos é formado por pessoas que vêm para cá oriundas de países coloniais e dependentes, de países onde o capitalismo ainda reina, onde a opressão ainda é total e onde a independência ainda precisa ser conquistada por meio da expulsão dos imperialistas.”[4]

Aprofundando a explicação da importância de separar os alunos da KUTV em dois grupos, Stalin explicou que, “uma linha tinha o objetivo de criar quadros capazes de atender às necessidades das repúblicas soviéticas do Oriente, e a outra, o objetivo de criar quadros capazes de atender às necessidades revolucionárias das massas trabalhadoras nos países coloniais e dependentes do Oriente.”[5]

Stalin continuou, explicando os objetivos específicos de cada quadro, falando diretamente sobre suas exclusivas condições demográficas e geográficas. Para os quadros do Oriente soviético da KUTV, Stalin listou cinco objetivos principais. Ele queria que os alunos:

1. “Criassem centros industriais nas repúblicas soviéticas do Oriente, para servir como bases para reunir os camponeses em torno da classe operária.

2. Elevassem o nível da agricultura.

3. Começassem e promovessem ainda mais a organização de cooperativas.

4. Levassem os sovietes para mais perto das massas.

5. Desenvolvessem uma cultura nacional.”[6]

Os cinco objetivos de Stalin para os quadros colonizados da KUTV eram:

1. “Conquistar os melhores elementos da classe trabalhadora para o lado do comunismo e criar Partidos Comunistas independentes.

2. Formar um bloco nacional-revolucionário de operários, camponeses e da intelligentsia revolucionária contra o bloco conciliador da burguesia nacional e do imperialismo

3. Assegurar a hegemonia do proletariado nesse bloco.

4. Lutar para libertar a pequena burguesia urbana e rural da influência conciliadora da burguesia nacional.

5. Assegurar que o movimento de libertação esteja vinculado com o movimento proletário nos países avançados.”[7]

Em última análise, o objetivo geral de reunir esses grupos de estudantes era criar uma “cultura proletária” que informasse a “cultura nacional” de cada grupo e, finalmente, fomentar a solidariedade internacional.[8]

A turma do primeiro ano da KUTV representava mais de 60 grupos étnicos diferentes e incluía tanto homens quanto mulheres membros do partido.[9] Para serem aceitos, os alunos precisavam ter de 18 a 32 anos e estar organizados em um partido comunista há pelo menos dois anos.[10] Ao longo dos anos, algumas das regras de admissão mudariam, mas o envolvimento com um partido permaneceu uma prioridade fundamental. Por exemplo, uma carta de 1932 para o Partido Comunista dos EUA (CPUSA) estipulava diretrizes ainda mais rígidas para aqueles membros vindos de países imperialistas: “Os candidatos precisam ser selecionados entre os elementos mais valiosos, leais e maduros do partido e da classe trabalhadora […] Todos os camaradas selecionados precisam ter boa saúde, para aguentar um longo período de estudos intelectuais nas condições climáticas de Moscou […] Os candidatos precisam ser completamente alfabetizados em seus idiomas nativos ou em um dos idiomas europeus e devem conhecer aritmética no nível de números inteiros.”[11]

Em 1924, quando estava na KUTV, Ho Chi Minh escreveu que, “a Revolução Russa não se satisfaz em fazer discursos platônicos agradáveis e em elaborar resoluções ‘humanitárias’ em favor de povos oprimidos, mas os ensina a lutar, e os ajuda em termos materiais e morais, conforme o proclamado por Lênin em suas teses sobre a questão colonial.”

Durante sua curta existência, a KUTV contou com muitos ex-alunos famosos, como o líder vietnamita Ho Chi Minh; o líder chinês Deng Xiaoping; o comunista estadunidense e autor de Black Bolshevik (Bolchevique Preto), Harry Haywood; o líder da revolta Mau Mau e primeiro presidente do Quênia, Jomo Kenyatta; e fundador do Partido Comunista das Filipinas, Crisanto Evangelista. Se o propósito da KUTV foi o treinamento de futuras lideranças comunistas, em retrospecto, ela pode ser considerada como um sucesso de modo geral.

A KUTV teve um impacto duradouro em seus alunos. Não somente eles conseguiam conhecer camaradas estrangeiros, mas também aprendiam aspectos práticos da teoria comunista. Em Black Bolshevik, Harry Haywood descreveu sua época na KUTV em grande detalhe. Haywood escreveu, “Estudávamos os trabalhos clássicos de Marx, Engels, Lênin e Stalin. Mas, diferentemente do ensino arcaico que conhecíamos, todo esse corpo teórico estava relacionado à prática. A teoria não era vista como dogma, mas como um guia para a ação.”[12] Haywood ilustrava isso observando que, “Costumávamos participar de clubes culturais de trabalhadores e fazer trabalho voluntário, como trabalhar aos sábados para ajudar a construir as linhas de metrô de Moscou. A educação para nós não era uma torre de marfim, mas uma verdadeira integração com a sociedade soviética, onde recebíamos conhecimento em primeira mão de nossas experiências.”[13] Ecoando os sentimentos de Haywood, Ho Chi Minh escreveu em 1924, quando estava na KUTV, que, “a Revolução Russa não se satisfaz em fazer discursos platônicos agradáveis e em elaborar resoluções ‘humanitárias’ em favor de povos oprimidos, mas os ensina a lutar, e os ajuda em termos materiais e morais, conforme o proclamado por Lênin em suas teses sobre a questão colonial.”[14]

Exemplos de cursos que eram oferecidos pela KUTV incluíam: Economia Política, Leninismo, Trabalho entre as Mulheres, Trabalho Clandestino, Construção do Partido e Materialismo Histórico.

A KUTV efetivamente ajudava seus alunos a aprender a como pegar a teoria que estavam estudando e colocá-la em prática, indo às comunidades locais e conversando com os trabalhadores. Alguém poderia argumentar que esse foi um precursor da pedagogia de educação popular; isto é, segundo Walter Rodney, um “método de ensino que é abertamente político e enraizado nas lutas de pessoas comuns que buscam realizar uma mudança social.”[15]

Os cursos educativos da KUTV eram altamente estruturados, e os itinerários dos alunos, cuidadosamente planejados para o ano letivo. Idealmente, caso os alunos conseguissem participar de todo o programa da universidade, o curso de estudos completo duraria cerca de três anos. O tempo dos alunos era dedicado ao estudo de idiomas, a discussão de teoria, trabalho militar e estágio em fábricas, além de tempo livre para explorar o país.[16] Exemplos de cursos que eram oferecidos pela KUTV incluíam: Economia Política, Leninismo, Trabalho entre as Mulheres, Trabalho Clandestino, Construção do Partido e Materialismo Histórico.[17] Além disso, enquanto acompanhavam essas aulas, os alunos podiam participar e trabalhar em seu departamento de pesquisa e escrever para seu próprio periódico de pesquisa chamado Revolutionary East (Oriente Revolucionário).[18] Embora o Revolutionary East ainda não tenha sido traduzido para o inglês, alguns artigos importantes publicados em suas páginas foram: “Land Reform in Central Asia” (Reforma Agrária na Ásia Central), de E. Zel’kina,[19] “From the Experience of the Syrian Uprising” (Da Experiência da Rebelião Síria), do membro do Partido Comunista da Palestina, Elie Teper,[20] e “The Development of National Scripts Among the Eastern Peoples of the Soviet Union and the Origin of Their National Alphabets” (O Desenvolvimento de Escritas Nacionais Entre os Povos Orientais da União Soviética e a Origem de seus Alfabetos Nacionais), de N. F. Yakovlev.[21]

Devido a uma posterior reestruturação das várias universidades do Comintern, que incluíam a Universidade Comunista das Minorias Nacionais do Ocidente, a Escola Internacional de Lênin e a Universidade Comunista Sun Yat-sen dos Trabalhadores da China, o Comintern decidiu por dissolver a universidade, e ela foi posteriormente fechada em 1938.[22] Embora eles talvez não soubessem à época, a KUTV da União Soviética teve um impacto duradouro e significativo em seus ex-alunos. Notavelmente, Ho Chi Minh liderou a revolução bem-sucedida do Vietnã, defendendo o país contra o imperialismo francês, japonês e estadunidense. Ho Chi Minh concretizou cada objetivo que Stalin havia definido para os quadros colonizados, e o legado da KUTV vive no Vietnã atualmente.

Com este breve panorama histórico da KUTV, a esperança final deste artigo é que, como comunistas, consigamos continuar essa discussão sobre a importância tanto da KUTV quanto da educação comunista de modo mais geral. Não há, até agora, nenhum estudo ou livro lançado no idioma inglês sobre os alunos da KUTV, os impactos gerais da universidade ou as mudanças que os alunos da KUTV trouxeram ao mundo após estudarem na universidade.

Existem, contudo, milhões de documentos não traduzidos nos Arquivos Soviéticos relativos à KUTV e as outras escolas do Comintern – documentos cuja tradução se faz mais do que necessária.

A KUTV, em seu breve tempo de existência, cumpriu seu potencial de unir povos originários e colonizados, construir um movimento socialista verdadeiramente internacional e auxiliar na luta contra o fascismo, a colonização e o imperialismo.

A KUTV também nos lembra que uma abordagem educativa e pedagógica organizada à prática política comunista é essencial na luta para criar um mundo melhor e mais justo.

Amostra de Cursos da KUTV

1. Economia Política – 200 horas

2. História da Internacional Comunista da União Soviética – 230 a 240 horas

3. Leninismo – 280 horas

4. Materialismo Histórico – 120 horas

5. Construção do Partido – 330 horas

6. Ciência Militar – 120 horas

7. Política Contemporânea – 80 horas

8. Idioma Inglês – 160 horas


Obras Citadas

d’Encausse, Hélène Carrère. Islam and the Russian Empire: Reform and Revolution in Central Asia. University of California Press, 1988.

Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” Paedagogica Historica. Vol. 35, nº 1, 1999, pp. 1-23. doi:10.1080/00309239903501 04.

Gafurov, Bobodžan G. Lenin and National Liberation in the East. Progress Publishers, 1978.

Haywood, Harry. Black Bolshevik: Autobiography of an Afro-American Communist. Liberator Press, 1978.

Kirasirova, Masha. “The ‘East’ as a Category of Bolshevik Ideology and Comintern Administration: The Arab Section of the Communist University of the Toilers of the East.” Kritika: Explorations in Russian and Eurasian History. Vol. 18, nº 1, 2017, pp. 7-34. doi:10.1353/ kri.2017.0001.

McClellan, Woodford. “Africans and Black Americans in the Comintern Schools, 1925-1934.” The International Journal of African Historical Studies. Vol. 26, nº 2, 1993, pp. 371-390. doi:10.2307/219551.

Menicucci, Garay. “Glasnost, the Coup, and Soviet Arabist Historians.” International Journal of Middle East Studies. Vol. 24, nº 4, 1992, pp. 559-77. doi:10.1017/ s0020743800022340.

Ravandi-Fadai, Lana. “‘Red Mecca’ – The Communist University for Laborers of the East (KUTV): Iranian Scholars and Students in Moscow in the 1920s and 1930s.” Iranian Studies. Vol. 48, nº 5, 2015, pp. 713-727. doi:10.1080/00210862.2015.1 058640.

Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. Foreign Languages Publishing House, 1954.

Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 9. Foreign Languages Publishing House, 1954.

Vaught, Seneca. “‘Grounding’ Walter Rodney in Critical Pedagogy: Toward Praxis in African History.” South. Vol. 1, nº 1, 2015, Article 1. https://digitalcommons.kennesaw.edu/ south/vol1/iss1/1.

Weinreich, Uriel. “The Russification of Soviet Minority Languages.” Problems of Communism. Vol. 2, nº 6, 1953, pp. 46-57.

Artigo originalmente publicado na edição nº 4 (maio de 2021) da revista Peace, Land , & Breadhttps://www.peacelandbread.com/_files/ugd/ec1faf_a0dc9568543643d5b99f2b952540f304.pdf


[1] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. p. 153.

[2] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 9. pp. 319-320.

[3] Kirasirova, Masha. “The ‘East’ as a Category of Bolshevik Ideology and Comintern Administration: The Arab Section of the Communist University of the Toilers of the East.” p. 9.

[4] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. pp. 135-136.

[5] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. p. 136.

[6] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. pp. 137-138.

[7] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. p. 151.

[8] Stalin, J.V. Obras de J.V. Stalin, Volume 7. p. 140.

[9] McClellan, Woodford. “Africans and Black Americans in the Comintern Schools, 1925-1934.” p. 374.

[10] Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” p. 5.

[11] Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” p. 5.

[12] Haywood, Harry. Black Bolshevik: Autobiography of an Afro-American Communist. p. 157.

[13] Haywood, Harry. Black Bolshevik: Autobiography of an Afro-American Communist. p. 161.

[14] G. Gafurov, Bobodžan. Lenin and National Liberation in the East. p. 258.

[15] Vaught, Seneca. “‘Grounding’ Walter Rodney in Critical Pedagogy: Toward Praxis in African History.” p. 4.

[16] Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” p. 6.

[17] Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” pp. 11-12.

[18] Filatova, Irina. “Indoctrination or Scholarship? Education of Africans at the Communist University of the Toilers of the East in the Soviet Union, 1923-1937.” p. 4.

[19] d’Encausse, Hélène Carrère. Islam and the Russian Empire: Reform and Revolution in Central Asia. p. 251.

[20] Menicucci, Garay. “Glasnost, the Coup, and Soviet Arabist Historians.” p. 576.

[21] Weinreich, Uriel. “The Russification of Soviet Minority Languages.” p. 48.

[22] Ravandi-Fadai, Lana. “‘Red Mecca’ –The Communist University for Laborers of the East (KUTV): Iranian Scholars and Students in Moscow in the 1920s and 1930s.” p. 723.

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